- Introdução
Busca-se, com a produção do presente artigo, a compreensão do que seja o instituto da desconsideração da personalidade jurídica, com fulcro na disciplina do Código Civil, Código de Defesa do Consumidor, Código Tributário Nacional e, mais importante, do Código de Processo Civil.
Analisar-se-á que, conquanto inexistissem anteriormente ao Código de Processo Civil normas processuais que regulamentassem o incidente de desconsideração, já era positivado no Direito brasileiro o instituto da desconsideração da personalidade jurídica, de modo que, a grosso modo, houve apenas a regulamentação processual do que já vinha sendo aplicado.
Ademais, será também abordada a aplicação inversa do instituto da desconsideração da personalidade jurídica, onde restará demonstrado que se trata de construção doutrinária/jurisprudencial que, com o advento do novo CPC, acabou positivado no Direito brasileiro, não tendo sua aplicação qualquer dúvida, desde então.
- Desconsideração da personalidade jurídica no ordenamento brasileiro
O Direito brasileiro, conforme brevemente exposto em linhas pretéritas, consagrou a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica, cumprindo, assim, ao Direito Processual Civil, a efetiva criação dos mecanismos necessários a pôr em prática tal instituto.
Assim, em que pese a desconsideração da personalidade jurídica já tivesse sido positivada no Direito brasileiro, no CDC, na Lei de Infrações à Ordem Econômica, no CC, no CTN e outras legislações esparsas, somente com o advento do novo CPC (Lei 13.105, de 16/3/2015), é que se inaugurou incidente processual específico para tanto.
Até então, o procedimento inerente à desconsideração da personalidade jurídica era discricionário, ocorrendo a critério do juiz da causa, sem qualquer rito processual previamente estabelecido, podendo, ou não, ser a parte contrária intimada a se manifestar, o que, por si só, denota total infringência aos princípios da segurança jurídica, isonomia, igualdade e ampla defesa.
Nos termos dos artigos 133, 134, 135, 136 e 137 do Código de Processo Civil, é lícito instaurar o incidente de desconsideração da personalidade jurídica em todas as fases do processo de conhecimento, no cumprimento de sentença e na execução de título extrajudicial.
Trata-se de inovação bastante importante no ordenamento jurídico, posto que, antes da positivação no CPC/2015, via de regra, a desconsideração da personalidade jurídica somente era aventada na fase de cumprimento de sentença/execução, oportunidade na qual podia-se verificar a inexistência de bens necessários à extinção da obrigação.
Referido instituto vem sendo amplamente utilizado, conforme denota-se de recente precedente firmado pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina:
[…] INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. […] Admitida a incursão no patrimônio das pessoas físicas, não há limitar o pedido ao bens do sócio-administrador, uma vez que a Corte da Cidadania possui entendimento assente de que “não há distinção entre os sócios da sociedade empresária no que diz respeito à disregard doctrine, de forma que todos eles serão alcançados.” (STJ, AgInt no AREsp 1347243/SP, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 18/03/2019, DJe 22/03/2019)[1].
Ademais, trata-se de instituto que não pode ser conhecido ex officio pelo juízo, devendo ser expressamente suscitado pela parte e/ou Ministério Público, caso o parquet tenha legitimidade para intervir no feito.
Outra importante inovação, ao nosso sentir, é a possibilidade de requerer a desconsideração da personalidade jurídica já na petição inicial (artigo 134, parágrafo 2º do CPC), oportunidade na qual o autor da demanda deverá valer-se da técnica de litisconsórcio eventual, caso queria incluir no polo passivo da demanda a sociedade empresarial (ou sócio, no caso da desconsideração inversa da personalidade jurídica).
Não sendo o caso de apresentação do pedido de desconsideração da personalidade jurídica já na petição inicial, restará ao litigante a possibilidade de pedir a instauração do incidente, nos termos do artigo 133 e seguintes do CPC.
Nesta hipótese, deverá demonstrar o efetivo preenchimento dos pressupostos legais que autorizam a intervenção, nos termos do artigo 134, parágrafo 4º do CPC.
A personificação se caracteriza pelo registro dos atos constitutivos no órgão competente, através do qual se confere personalidade jurídica à sociedade. Sem registro, não há sociedade no mundo jurídico, de modo que, por consectário lógico, não há como se buscar a responsabilização da empresa, posto que esta “inexiste”.
O interessado deve comprovar, também, a fraude, abuso de personalidade e/ou a confusão patrimonial, nos termos do artigo 50 do Código Civil, os quais, ao nosso sentir, podem ser considerados os principais pressupostos para aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica.
A fraude caracteriza-se pela utilização ilícita da autonomia patrimonial da sociedade empresarial, como subterfúgio para ocultar bens e deixar de cumprir com suas obrigações.
O abuso de direito/personalidade, por sua vez, denota-se da desvirtuação da personalidade jurídica legalmente conferida à sociedade empresarial, caracterizando pelo ato abusivo que vá de encontro à função social da sociedade. Ou seja, trata-se da utilização abusiva dos direitos inerentes à personalidade jurídica de forma a, propositalmente, lesar o terceiro interessado.
A confusão patrimonial, por fim, decorre de atos da sociedade e seus sócios (inclusive, outras pessoas jurídicas), em que não há clara delimitação da efetiva propriedade dos bens/ativos, acarretando na utilização indiscriminada dos bens por ambas as partes.
Assim, requerida, e admitida, ante a comprovação do preenchimento dos pressupostos legais — leia-se direito material[2] —, a instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica suspenderá o processo, nos termos do parágrafo 3º do artigo 134 do CPC, citando-se, na sequência, o sócio ou a pessoa jurídica, para se manifestar e requerer a produção de provas.
Neste ponto, ressalta-se a expressa menção à citação do sócio e da pessoa jurídica, fazendo clara alusão aos institutos da desconsideração da personalidade jurídica e à desconsideração inversa da personalidade, o que será melhor traçado a seguir.
Produzidas as provas, manifestando-se as partes envolvidas, em respeito ao contraditório e à ampla defesa, o incidente de desconsideração da personalidade jurídica será resolvido por decisão interlocutória, impugnável por agravo de instrumento, nos termos do artigo 1.015, inciso IV do CPC. Caso, eventualmente, resolva-se o incidente em conjunto à sentença, o que é pouco provável, ante a determinação de suspensão do processo principal, o caso será de apelação cível, nos termos do artigo 1.009 do CPC.
Como nos ensina Didier Jr., a teoria da desconsideração da personalidade jurídica não almeja eliminar o princípio da separação dos patrimônios da sociedade e seus sócios, mas, “contrariamente, servir como mola propulsora da funcionalização da pessoa jurídica, garantido as suas atividades e coibindo a prática de fraudes e abusos através dela. Ela atua episódica e casuisticamente”.
Ou seja, a utilização do instituto da desconsideração da personalidade jurídica é medida excepcional, não a regra. Diferente não poderia ser eis que, com força no artigo 985 do Código Civil, após o registro dos atos constitutivos no órgão devido, a sociedade passa a gozar de autonomia, adquirindo personalidade jurídica.
Vale ressaltar, por fim, que, uma vez aplicada a desconsideração da personalidade jurídica, não há que se falar em limites à responsabilização dos sócios na proporção de suas quotas, posto que todos os envolvidos na conduta são responsabilizados pela dívida existente, nos termos do entendimento já firmado pelo Superior Tribunal de Justiça no Acórdão 1.169.175/DF[3].
Aplica-se, pois, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica quando, legalmente constituída a sociedade empresarial, há comprovadamente a ocorrência de má administração, fraude, confusão patrimonial, abuso de direito e/ou desvio de personalidade, viabilizando a busca do credor pelos bens do sócio para satisfação da dívida.
- A desconsideração inversa da personalidade jurídica
A desconsideração inversada personalidade jurídica objetiva o afastamento da autonomia patrimonial da sociedade empresária, com o fito desta responder pelas obrigações adquiridas pelos seus sócios-administradores.
No Brasil, atribui-se ao acórdão de relatoria do desembargador Manoel de Queiroz Pereira Calças, do TJ-SP, no julgamento do AI 1.198.103-0/0, em 2008, a primeira aplicação inversa do instituto da desconsideração da personalidade jurídica. In casu, desconsiderou-se a personalidade da pessoa natural, sócio da empresa, para atingir o patrimônio da pessoa jurídica, ante a presença dos requisitos autorizadores da desconsideração “clássica”, ex vido artigo 50 do Código Civil.
Exemplo prático e corriqueiro no dia a dia do Judiciário brasileiro é o esvaziamento do patrimônio do devedor pela transferência para a titularidade da pessoa jurídica do qual é sócio, com o fito de tornar-se insolvente, dificultando o cumprimento de suas obrigações.
Até o advento do CPC/2015, em vigor desde março de 2016, era possível a aplicação da teoria da desconsideração inversa da personalidade jurídica da empresa a partir da interpretação extensiva do comando previsto no artigo 50 do Código Civil, onde se advogava a tese de que, uma vez sendo possível utilizar-se do patrimônio dos sócios/administradores para responder pelas dívidas da sociedade, nada mais justo do que, inversamente, utilizar-se do patrimônio da sociedade para saldar dívida pessoal dos sócios/administradores.
Não obstante, o Código de Processo Civil, através do parágrafo 2º do artigo 133, veio a chancelar o entendimento construído jurisprudencial e doutrinariamente, positivando expressamente a teoria da desconsideração inversa da personalidade jurídica, quando afirma que “aplica-se o disposto neste Capítulo à hipótese de desconsideração inversa da personalidade jurídica”.
Após a regulamentação do incidente de desconsideração da personalidade jurídica, em sua modalidade inversa, inclusive, o Superior Tribunal de Justiça[4] aplica o dispositivo do CPC:
“[…] DESCONSIDERAÇÃO INVERSA DA PERSONALIDADE JURÍDICA. EXECUÇÃO CONTRA EMPRESA PERTENCENTE A CONGLOMERADO, CUJO SÓCIO MAJORITÁRIO OU ADMINISTRADOR ALIENOU A QUASE TOTALIDADE DAS COTAS SOCIAIS DA PRINCIPAL EMPRESA DO GRUPO PARA SUA ESPOSA. FRAUDE À EXECUÇÃO. ABUSO DA PERSONALIDADE. CONFUSÃO PATRIMONIAL. ATO ATENTATÓRIO À DIGNIDADE DA JUSTIÇA. TENTATIVA DE FRUSTRAR A EXECUÇÃO. RISCO DE INSOLVÊNCIA DO DEVEDOR. NECESSIDADE DE PERSEGUIÇÃO DE NOVAS GARANTIAS. […]”
Ou seja, diferentemente da desconsideração da personalidade jurídica, a desconsideração inversa não estava prevista em lei, até março de 2016, quando entrou em vigor o novo CPC, o que não lhe obstava a aplicação com base em doutrina, amplamente aceita pelos tribunais superiores.
A partir da nova disposição processual, restou encartado em nosso ordenamento jurídico os procedimentos inerentes ao instituto da desconsideração da personalidade jurídica, deixando, assim, de ser ato discricionário do juízo, respeitando-se, por conseguinte, os princípios da isonomia, segurança jurídica, igualdade e ampla defesa.
Conclusão
Introduzida no Brasil nos anos de 1960 pelo doutrinador Rubens Requião, a desconsideração da personalidade jurídica foi, aos poucos, encartada na lei material pátria, com a inclusão de previsão legal no Código de Defesa do Consumidor, Código Tributário Nacional e Código Civil, dentre outros.
Desde sua introdução, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica foi bem aceita pela jurisprudência e doutrina nacionais, sendo outorgado, por meio do legislador ordinário, ao Direito Processual Civil a árdua tarefa de efetiva criação dos mecanismos necessários a pôr em prática tal instituto.
Somente com o advento do atual Código de Processo Civil, instituído pela Lei 13.105, de 16 de março de 2015, é que se inaugurou incidente processual específico para tanto. Até então, a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica dava-se a critério e discricionariedade do juiz da causa, sem qualquer rito processual previamente estabelecido.
A aplicação inversa da desconsideração da personalidade jurídica não era prevista na lei material, mas foi doutrinária e jurisprudencialmente construída, na qual, como se pressupõe pelo seu título, afasta-se a autonomia patrimonial da sociedade empresária, com o fito de responder pelas obrigações adquiridas pelos seus sócios-administradores.
Não obstante, o Código de Processo Civil, além de criar o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, veio a chancelar o entendimento construído pela jurisprudência e doutrina pátria, reconhecendo expressamente a teoria da desconsideração inversa da personalidade jurídica, quando afirma em seu parágrafo 2º do artigo 133 do Código de Processo Civil que “será citado o sócio ou a pessoa jurídica”.
Conclui-se, portanto, que, com o advento do atual Código de Processo Civil, foi criada a figura do incidente de desconsideração da personalidade jurídica, oportunizando aos aplicadores do Direito à uniformização dos procedimentos necessários à desconsideração, bem como foi positivada a figura da desconsideração inversa da personalidade jurídica, o que, até então, era fruto de extensa construção jurisprudencial e doutrinária.
[1] TJ-SC, AI 4020017-35.2018.8.24.0900, de Trombudo Central, rel. des. Jorge L. C. Beber, 2ª Câmara de Direito Civil, j. 27/6/2019.
[2] Tendo em vista que a norma processual faz remissão expressa ao preenchimento dos pressupostos previstos em lei para instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica, aquele que requerer a instauração do incidente deverá, obrigatoriamente, comprovar a observância aos ditames previstos em lei (Código Civil, Código de Defesa do Consumidor etc.).
[3] STJ. REsp 1.169.175/DF, rel. min. MASSAMI UYEDA, 3ª TURMA, j. em 17/2/2011.
[4] STJ. REsp 1.721.239/SP, rel. min. PAULO DE TARSO SANSEVERINO, 3ª TURMA, j. em 27/11/2018.
Referências
BRASIL. Câmara dos Deputados. Lei 13.105/2015. Institui o Código de Processo Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso em: 4/7/2019.
BRASIL. Câmara dos Deputados. Lei 10.406/2002. Institui o Código Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm>. Acesso em: 4/7/2019.
BRASIL. Presidência da República. Medida Provisória 881/2019. <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/Mpv/mpv881.htm>. Acesso em: 4/7/2019.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.169.175/DF, rel. ministro MASSAMI UYEDA, TERCEIRA TURMA, julgado em 17/2/2011, DJe 4/4/2011.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.721.239/SP, rel. ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 27/11/2018, DJe 6/12/2018.
BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. TJ-SC, AI 4020017-35.2018.8.24.0900, de Trombudo Central, rel. des. Jorge Luis Costa Beber, Segunda Câmara de Direito Civil, j. 27/6/2019.
BRASIL. Tribunal Regional Federal da 1ª Região. AGA 0007940-55.2017.4.01.0000, DESEMBARGADOR FEDERAL MARCOS AUGUSTO DE SOUSA, TRF1 – OITAVA TURMA, e-DJF1 14/12/2018 PAG.
DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento, 19 ed. Salvador: Ed. Jus Podivm, 2017.
FERNANDES, Paola Cristina Rios Pereira. Desconsideração da personalidade jurídica. Disponível em: <http://revistavisaojuridica.uol.com.br/advogados-leis-jurisprudencia/78/artigo274900-1.asp>. Acesso em: 20/4/2019.
KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcante. A desconsideração da personalidade jurídica (disregard doctrine) e os grupos de empresas. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 86.
Fonte: ConJur
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