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Artigo – Migalhas – Aplicação da teoria do inadimplemento do contrato em tempos de pandemia

Uma prática rechaçada pelo ordenamento jurídico brasileiro

Por Diego Barbosa Campos e Juliano Aveiro

Afirmar a gravidade da crise mundial em razão da pandemia de Covid-19 é chover no molhado. O que ainda não sabem, nem mesmo os especialistas, é o tamanho do problema.

Nos últimos dias, um assunto ganhou considerável espaço na mídia: diversos países se veem obrigados a participar de um verdadeiro leilão – do tipo quem dá mais – com fábricas chinesas detentoras de 90% (noventa por cento) da produção mundial de equipamentos de proteção (EPIs) e 1/5 de respiradores artificiais, ferramentas essenciais no combate à Covid-19.

Chama ainda mais atenção que nem os contratos já celebrados foram preservados, pois as notícias são de que as fábricas chinesas estão cancelando contratos de compra e venda de EPIs e respiradores para realizar outros negócios, mais vantajosos.

Vê-se, com isso, uma clara aplicação da Teoria do Inadimplemento Eficiente do Contrato (efficient breach theory). Teoria bastante presente no ordenamento jurídico de outros países, mas, pelo menos até o momento, rechaçada pelo brasileiro.

A Teoria do Inadimplemento Eficiente do Contrato sugere que o contratante, diante de uma oportunidade mais lucrativa, possa descumprir deliberadamente o pacto já firmado, honrando com o pagamento da multa contratual prevista.

Richard Posner, jurista americano à quem a teoria é comumente associada, explica que “a parte é tentada a quebrar o contrato simplesmente porque o lucro da quebra excederia o lucro decorrente de cumprimento da obrigação. Ele o fará se o lucro exceder a expectativa de lucro da outra parte no cumprimento e, ainda, os danos decorrentes da quebra” (tradução livre)1.

Exatamente o modo de proceder das fábricas chinesas noticiado pela mídia2. Embora o pacto contratual já tivesse sido firmado, muitas companhias optaram por inadimplir a obrigação, indenizando o primeiro comprador mediante pagamento de multa previamente fixada, para celebrar outro contrato, mais lucrativo.

É dizer, valendo-se da Teoria do Inadimplemento Eficiente do Contrato, o devedor (da obrigação contratual) que encontra uma situação capaz de, economicamente, justificar o inadimplemento da obrigação diante do credor, rompe o contrato originário para contratar com terceiro.

O que se vê, portanto, é que a Teoria do Inadimplemento Eficiente do Contrato está visceralmente ligada ao lucro financeiro que é escopo das organizações privadas. Não fosse pela ganância, seria fácil chegar à conclusão de que o contrato primevo seria mantido, seja pela ética, seja pela facilidade das partes envolvidas.

Não se sabe em que moldes foram entabulados os contratos de compra e venda com as fábricas chinesas3, mas, diante desse cenário, uma pergunta ecoa: a Teoria do Inadimplemento Eficiente do Contrato foi incorporada pelo ordenamento jurídico brasileiro?

Pelo menos até o momento, não. E as justificativas são muitas.

A primeira das barreiras diz respeito à função social do contrato, normatizada no art. 421 do Código Civil4.

Isso porque, consoante Enunciado 22 da I Jornada de Direito Civil, “a função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, constitui cláusula geral que reforça o princípio de conservação do contrato, assegurando trocas úteis e justas”.

Assim, o vínculo obrigacional, na medida do possível, sempre deverá ser mantido, sendo certo que a conservação ou preservação do vínculo é um importante subprincípio da função social do contrato5.

À vista disso, a rescisão contratual deve ser considerada a última das hipóteses pelos contratantes.

Some-se a isso a boa-fé objetiva normatizada no art. 422 do Código Civil6. Um verdadeiro dever legal que os contratantes possuem, devendo-se pautar sempre pela cooperação e lealdade.

Em festejada obra coordenada pelo Ministro Cezar Peluso, Nelson Rosenvald explica que a boa-fé objetiva compreende “um modelo de conduta social, verdadeiro standard jurídico ou regra de conduta, caracterizado por uma atuação de acordo com determinados padrões sociais de lisura, honestidade e correção de modo a não frustrar a legítima confiança da outra parte”7.

Confrontando essas diretrizes com o inadimplemento deliberado realizado pelas fábricas chinesas, percebe-se que foi contrariada a boa-fé objetiva do contrato8, uma vez a contratação impõe às partes o dever de cooperar para a boa execução do sinalagma9.

Cumpre destacar que o inadimplemento deliberado, visando apenas e tão-somente o lucro e violando o dever de boa-fé objetiva, pode ser interpretado como ato ilícito, nos termos do art. 187 do Código Civil10, ficando a parte, nesse caso, obrigada a reparar todos os danos que der causa, conforme art. 927 do mesmo códex11.

Além disso, a escolha deliberada do devedor pelo inadimplemento contratual e, por conseguinte, da aplicação da multa contratual (cláusula penal), apresenta, prima facie, desarmonia com outras normas do Código Civil.

Sobre isso, é comum encontrar interpretações no sentido de que o art. 408 do CC12 vedaria a aplicação da Teoria do Inadimplemento Eficiente do Contrato por, supostamente, condicionar a aplicação da multa à configuração de culpa13.

Entretanto, filia-se aqui à parte majoritária da doutrina no sentido de que não há necessidade de demonstração do elemento culpa para incidência da cláusula penal, pois a expressão “culposamente”, de que se vale o artigo, deve ser havida como noção de mera imputação.14

A esse respeito, é lapidar o escólio de Gustavo Tepedino:

“… andaria bem o novo legislador se mantivesse a locução anterior uma vez que a inserção do termo ‘culposamente’ poderia sugerir um novo requisito para aferição da aplicação da cláusula penal, este, contudo, de natureza objetiva. Tal solução, contudo, deve ser afastada interpretativamente, em homenagem à coerência do sistema”15

A despeito de a Teoria do Inadimplemento Eficiente do Contrato não encontrar óbice no artigo supracitado, o mesmo não se pode dizer do art. 410 do Código Civil16.

Com efeito, a inteligência do art. 410 do CC é cristalina ao assinalar que a cláusula penal estipulada para o inadimplemento total da obrigação deve, quando for o caso, ser convertida em benefício do credor (da obrigação contratada).

Veja-se, portanto, que “a escolha só favorece ao credor e nunca ao devedor, que deverá prestar fielmente o prometido. Em consequência, não poderá o devedor pretender liberar-se da obrigação, oferecendo ao credor a pena convencionada”.17

No caso de aplicação da Teoria do Inadimplemento Eficiente do Contrato é o devedor (da obrigação contratual) que está intencionalmente se liberando da obrigação pelo simples pagamento da cláusula penal. Essa faculdade, no entanto, não é conferida pela legislação brasileira.

Fonte: Migalhas

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