A terrível crise gerada pela pandemia agravou, de forma profunda, a policrise brasileira, que já estava em pleno curso: ética, moral, política e economia em frangalhos. O momento é o de reclamar protagonismo ímpar da lucidez nacional, para atenuar os dolorosos efeitos de uma paralisação que acentuará o fosso entre sobreviventes e invisíveis. Estes, conforme o Ministro da Economia, surgiram como legião e escancararam a situação de miséria em que subsiste grande parte da população brasileira.
Uma das atividades humanas mais importantes, pois geradora de potentes alavancas econômicas, é aquela exercida pelo mercado imobiliário. A construção civil amplia oportunidades de emprego. Dos mais simples aos mais sofisticados. Está na linha de frente para entregar teto às famílias. A moradia é direito social a que aspiram milhões de brasileiros. A regularização fundiária uma política de Estado que tem repercussão multifatorial, também se vincula ao universo dos imóveis.
Tudo isso converge para uma prestação estatal, a dos Registros de Imóveis, que só adquiriu excelência e o atual reconhecimento, porque o constituinte de 1988 engendrou fórmula ideal: seu exercício em caráter privado. Foi por reconhecer que a atuação estatal direta é sempre contaminada por ineficiência, inércia, resistência a inovações, ausência de criatividade, – e, no caso brasileiro, pela insuperável presunção de não raro tangenciar a ilicitude – que o elaborador do pacto fundante estabeleceu a delegação para atendimento extrajudicial.
A formidável mudança no funcionamento do sistema cartorial é manifesta e reconhecida pelos setores afetados. O Registro de Imóveis inovou, assimilou a profunda mutação causada pelo advento da Quarta Revolução Industrial e levou a sério a recomendação do constituinte para o associativismo, como instrumento de conjugação de esforços hábil a realizar aquilo que à individualidade é mais difícil.
Foi assim que a associação entre registradores conseguiu criar as Centrais Eletrônicas Estaduais, com a missão de facilitar o intercâmbio de informações entre os registros, o Judiciário, a administração pública e o público em geral. O objetivo: conferir eficácia e celeridade à prestação jurisdicional e ao serviço público. É o que consta do Provimento 47 do CNJ, editado em 18.6.2015.
Ou seja, a criação das Centrais tornou-se obrigatória e não facultativa. Para a sua consecução, uniram-se os registradores e investiram pesadamente em plataformas e estruturas mantidas sob constante atualização. É truísmo afirmar que as modernas tecnologias são impulsionadas pela incessante obsolescência e que não é permitido hesitar em adoção de avanços e funcionalidades. Foi a inspiração empresarial que permitiu o festejado êxito das delegações extrajudiciais, de forma a eliminar a resistência outrora voltada ao cartorialismo.
As Centrais atendem ao Poder Judiciário e à Administração Pública, além dos particulares interessados na obtenção de serviços de qualidade diferenciada pela rapidez e segurança. Incalculável o valor que se poupou à Administração Estatal Direta, se ela tivesse de se estruturar para conseguir a eficiência obtida com a penhora online e CNIB, por exemplo. São astronômicas as cifras das informações gratuitamente fornecidas ao Judiciário, ao Ministério Público, à Receita Federal e a outros organismos do Estado. O enfrentamento à corrupção teria sido outro, não fora o elevado grau de expertise acumulado pelas Centrais Eletrônicas.
O custo de instalação e manutenção de equipamentos, plataformas, estruturas digitais e de equipes diuturnamente empenhadas em atendimento de reconhecida excelência, é suportada pela precificação dos serviços prestados. Custo módico, transparente e propiciador de contínuo aprimoramento dos serviços. Não se confunde com os emolumentos, dos quais o Estado é destinatário certo, eis que 27% deles são carreados diretamente para o Erário estadual e cerca de 10% para o Judiciário e MP, em pagamento pela fiscalização dos serviços além da manutenção do Registro Civil deficitário.
Quando os Registradores se associaram e injetaram eficiência a uma prestação quase sempre acusada de preservar padrões arcaicos e burocráticos, o fizeram autorizados pelas Corregedorias e em observância estrita ao ordenamento. É a Constituição que incentiva o associativismo, a reconhecer que os grupos são valiosos instrumentos de consolidação democrática. Mas a Constituição não veda, ao contrário, estimula que todo trabalho seja remunerado. A contraprestação pelo serviço é legal, legítima e moral decorrência do princípio da livre iniciativa.
Esperava-se que a pandemia viesse acelerar projetos para dinamização ainda maior das Centrais Eletrônicas, com a expansão de préstimos derivados de uma saudável hermenêutica ampliativa do conceito de alienação fiduciária em garantia, implementação de home equity e de outras medidas para acelerar a retomada do desenvolvimento.
Tudo isso parece frustrado com a insólita medida do CNJ, ao vedar a cobrança de serviços prestados pelas Centrais Eletrônicas do RI. Como se já não vigorasse a regra pragmática dos anglo-saxões: não existe almoço grátis.
Nefasta marcha a ré numa escalada que vinha testemunhando a capacidade brasileira de criatividade superadora dos maléficos efeitos de uma pandemia assassina.
*José Renato Nalini é desembargador aposentado do TJSP, do qual foi corregedor geral (2012-2013) e presidente no biênio 2014-2015
Fonte: O Estado de São Paulo