João Rodrigo Stinghen
Caso o registrador seja interpelado por ordem judicial ao assentamento de indisponibilidade de bens em imóvel cedido em alienação fiduciária, deve informar o juízo dessa realidade, mas caso o juízo insista na ordem equivocada, não tem alternativa a não ser cumpri-la.
1.A alienação fiduciária é espécie de compra e venda com pagamento diferido no tempo e garantida pelo próprio objeto transacionado. Tecnicamente, é o “negócio mediante o qual o devedor (fiduciante), transmite a propriedade imobiliária ao fiduciário (credor), em garantia da dívida assumida pela aquisição do imóvel” (SCAVONE JUNIOR, 2018, p. 541).
É um modelo contratual muito utilizado por trazer vantagens a ambas as partes: o consumidor, com posse direta, desde logo pode usar e fruir dobem; o credor tem a segurança de ter o próprio bem como garantia (propriedade resolúvel), uma vez que a propriedade passará ao consumidor apenas com a quitação do contrato.
Esse modelo contratual pode ser utilizado para bens móveis – sendo o mais comum para comércio de veículos automotores – mas também para bens imóveis. Nesse caso, incide o regramento dos artigos 22 a 33 da lei 9.514/97.
O art. 22 da aduz que, dada a alienação fiduciária, a propriedade do imóvel é do credor, ainda que em caráter resolúvel. Segundo o § 1º desse dispositivo, não apenas a propriedade plena pode ser cedida, mas também bens enfitêuticos, o direito de uso especial para fins de moradia e o direito real de uso.
Quando a garantia recai sobre a propriedade plena, o bem objeto da garantia não mais se encontraria no patrimônio do devedor. A propriedade resolúvel do credor, ou propriedade fiduciária, é constituída mediante registro na matrícula do bem (art. 23). O título que fundamenta o assentamento é o próprio contrato de alienação, e deve preencher os requisitos do art. 24. Nesse momento, ocorre o “desdobramento da posse, tornando-se o fiduciante possuidor direto e o fiduciário possuidor indireto da coisa imóvel” (art. 23, parágrafo único).
Caso o devedor realize o adimplemento, a propriedade fiduciária é resolvida (art. 25). Apresentado o termo de quitação, o oficial promoverá o cancelamento do registro (art. 25, § 2º). Todavia, reza o art. 26 que “vencida e não paga, no todo ou em parte, a dívida e constituído em mora o fiduciante” a propriedade é consolidada em prol do credor; o procedimento é descrito nos parágrafos do art. 26. Após a consolidação, a lei assegura a reintegração liminar na posse, com prazo de sessenta dias para desocupação (art. 30). Ainda, diz a lei que: “na hipótese de insolvência do fiduciante, fica assegurada ao fiduciário a restituição do imóvel” (art. 31).
Pelo que se percebe, vários são os meios que a lei utilizou para proteger o credor fiduciário de bem imóvel, tornando célere a satisfação da garantia, caso necessário.
2. Porém, existe uma situação que tem gerado controvérsias práticas. É o caso da declaração de indisponibilidade de bens do devedor fiduciário. Nas palavras da ministra Nancy Andrighi, a indisponibilidade de bens é medida cautelar atípica que “atinge todo o patrimônio do devedor, e não um bem específico, não vinculando, portanto, qualquer bem particular à satisfação de um determinado crédito” (BRASIL, 2017).
Quando um devedor tem contra si essa determinação, seus bens não podem ser alienados ou transferidos para terceiros. Quaisquer imóveis da pessoa estarão indisponíveis, sendo a cláusula assentada nas respectivas matrículas dos bens.
Na prática, a indisponibilidade alcança ao bem oferecido em garantia para alienação fiduciária.Porém, nessa última situação, o que se tem é uma indisponibilidade recaindo sobre propriedade alheia. Afinal, a propriedade resolúvel é do credor, não do devedor. Assim, caso o devedor não pague pelo bem, o credor não poderá executar o contrato e consolidar a propriedade fiduciária. Ou seja, a indisponibilidade de bens contra o devedor obriga o credor fiduciário a se abster de utilizar seus legítimos poderes de domínio.
3. Nesse ínterim, caso o Oficial de Registros em que o bem alienado está registrado receba ordem para assentar, na matrícula desse bem, indisponibilidade em face do devedor, pode exercer o juízo de qualificação. Isso significa simplesmente, antes de cumprir a ordem, informar ao juízo que existe a alienação e que, a rigor, a propriedade em questão não é do devedor contra quem se declarou a indisponibilidade.
Todavia, caso o juízo já tenha ciência desse fato ou mesmo assim insista na determinação de indisponibilidade, nada pode fazer o oficial. Isso porque a qualificação registral não pode alcançar ao mérito da decisão, conforme se percebe dos seguintes julgados de processos administrativos do E. TJ/SP: apelação cível 1000328-93.2015.8.26.0451, Dje 15/3/17; apelação cível 1025290-06.2014.8.26.0100; rel. Elliot Akel, Foro Central Cível; Dje. 30/1/15; apelação cível 0001717-77.2013.8.26.0071; rel. José Renato Nalini; Foro de Bauru; Data de Registro: 19/12/13).
Com efeito, é possível postergar uma ordem para fornecer, ao juízo, informações adicionais que podem fazê-lo decidir de maneira diversa. Trata-se de uma atuação do oficial em relação a elementos extrínsecos à decisão. Contudo, uma vez que o juiz decidiu pela indisponibilidade, há decisão de mérito, o que foge à análise da qualificação do agente delegado (PEDROSO, MONTEIRO FILHO, 2017, p.122).
4. O registrador pode e deve qualificar as determinações recebidas, mas não está apto a descumprir ordens judiciais, salvo por questões de caráter extrínseco. Portanto, caso o registrador seja interpelado por ordem judicial ao assentamento de indisponibilidade de bens em imóvel cedido em alienação fiduciária, deve informar o juízo dessa realidade, mas caso o juízo insista na ordem equivocada, não tem alternativa a não ser cumpri-la.
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BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (). RESp 1.493.067. rel. min.Nancy Andrighi, Dje. 24 mar. 2017. Disponível em: Acesso em 17 jul. 2019.
PEDROSO, Alberto Gentil de Almeida; MONTEIRO FILHO, Ralpho Waldo de Barros. Registro Imobiliário. São Paulo: Revistas dos Tribunais, 2017.
SCAVONE JUNIOR, Luiz A. Direito Imobiliário: teoria e prática. 13 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018.
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*João Rodrigo Stinghen é advogado.