Encerrou-se no último dia 4, no plenário virtual do STF, o julgamento do RE 796.376/SC (tema 376 da repercussão geral), versando sobre a incidência de ITBI na integralização com imóveis do capital de sociedades. Salvo raras exceções, como o preciso artigo de Álvaro Santos, parece-nos que o acórdão tem sido supervalorizado quer por quem o festeja, quer por quem o lamenta. Diante disso, faz-se necessário relembrar o caso concreto e discernir (i) o que o Supremo — a nosso ver — deveria ter dito; (ii) o que ele efetivamente disse; e, sobretudo, (iii) o que ele não disse.
O caso dos autos era o seguinte: os sócios de uma empresa definiram que o seu capital seria de R$ 24 mil e o integralizaram com 17 imóveis que avaliaram em R$ 802.724,00, registrando a diferença (R$ 778.724,00) como reserva de capital.
Pois bem: a Constituição prevê que o ITBI “não incide sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital, nem sobre a transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, salvo se, nesses casos, a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil” (artigo 156, parágrafo 2º, inciso II).
Cuidando por ora da primeira parte do dispositivo — diretamente envolvida no debate da causa —, o que se exige é (a) que os imóveis sejam incorporados ao patrimônio da empresa e (b) que esta esteja em realização de capital. Ora, as contas de reserva de capital compõem o patrimônio líquido da sociedade (Lei 6.404/76, artigo 178, parágrafo 2º, inciso III), o que satisfaz o primeiro requisito. E, dentre outras grandezas que não interessam aqui, registram “a contribuição do subscritor de ações que ultrapassar o valor nominal” (idem, artigo 182, parágrafo 1º, alínea “a”), o que atende ao segundo.
Isso posto, e dado que mesmo o legislador — e, a fortiori, também o intérprete — deve ater-se ao sentido técnico dos institutos de direito privado utilizados pela Constituição para definir ou limitar competências tributárias (CTN, artigo 110), concluímos com a máxima vênia que o Supremo deveria ter reconhecido a imunidade de forma irrestrita na espécie, na linha do voto do ministro Marco Aurélio — que foi seguido pelos ministros Edson Fachin, Ricardo Lewandowski e Cármen Lúcia.
Cuidemos agora do que o STF disse. A chave é a manifestação do ministro Alexandre de Moraes, único voto escrito da corrente majoritária — formada ainda pelos Ministros Gilmar Mendes, Luiz Fux, Rosa Weber, Dias Toffoli, Luís Roberto Barroso e Celso de Mello. Em suma, procede S. Exa. a uma redução semântica do texto constitucional, afirmando que este limita a imunidade aos imóveis destinados à imediata integralização do capital subscrito, quando — como se viu — o que se exige é que eles sejam incorporados ao patrimônio da empresa (que compreende as reservas de capital). Firmada essa duvidosa premissa, resulta automática a conclusão de que os imóveis — ou as parcelas do seu valor, quando se trate de um bem único — registrados em reserva de capital têm “destinação [que] escapa da finalidade da norma”. Essa leitura restritiva parece justificar-se pela desconfiança — cuja dissecação conduziria a mecanismos corriqueiros do Direito Societário — quanto às razões que levam um sócio a pagar por uma ação muito mais do que o seu valor nominal.
Mas nem tudo são más notícias para os contribuintes. Em lance inesperado, o voto ligou as restrições impostas pela parte final do dispositivo — “salvo se, nesses casos, a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil” — apenas às transmissões decorrentes fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, afirmando ser “incondicionada” a imunidade dos imóveis entregues em subscrição de capital, qualquer que seja a atividade da empresa destinatária. Embora isso não esteja expresso, o que se tem é a declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto do caput do artigo 37 do CTN, para determinar que este não se aplica à hipótese do inciso I do artigo 361.
Passemos, enfim, ao que o Supremo não disse. O caso tratava da diferença entre o valor atribuído aos imóveis pelo contribuinte — que pode ser tanto o histórico (de imposto de renda) quanto o atualizado (de mercado) — e o valor das cotas ou ações com eles integralizadas. Não tratava, ao contrário do que pretendem alguns, da diferença entre o valor cadastral (valor venal para fins tributários, definido pelo Município) e o valor histórico dos imóveis, quando o contribuinte adota este último e com ele integraliza cotas ou ações de idêntica expressão nominal.
Como se vê, são situações distintas, que comparam fatores distintos: valor do imóvel x valor das cotas/ações na primeira hipótese; valor cadastral do imóvel x valor histórico do imóvel na segunda. A pretensão ao ITBI neste último caso, além de não ter sido discutida no acórdão — que fala sempre em excesso de valor dos imóveis sobre o do capital a ser integralizado, com a consequente formação de reserva na contabilidade da empresa destinatária —, contraria a federação, como demonstramos em coluna anterior, da qual adaptamos os trechos a seguir.
Segundo o artigo 23 da Lei 9.249/95, “as pessoas físicas poderão transferir a pessoas jurídicas, a título de integralização de capital, bens e direitos pelo valor constante da respectiva declaração de bens ou pelo valor de mercado” (caput). Segue a lei: “se a entrega for feita pelo valor constante da declaração de bens, as pessoas físicas deverão lançar nesta declaração as ações ou quotas subscritas pelo mesmo valor dos bens ou direitos transferidos” (parágrafo 1º). Por outro lado, “se a transferência não se fizer pelo valor constante da declaração de bens, a diferença a maior será tributável como ganho de capital” (parágrafo 2º).
Ao ver de alguns municípios, a parcela correspondente ao ganho de capital que deixou de ser auferido (e submetido ao IRPF) na hipótese do parágrafo 1º sofrerá a incidência do ITBI. Olhando mais de perto, percebe-se que se está diante de um falso problema, pois — ao contrário do que ocorre na situação decidida pelo STF, onde há efetiva diferença entre o valor dos imóveis e o das cotas ou ações —, na hipótese do parágrafo 1º há identidade tanto (i) entre o valor de declaração dos imóveis e o valor de face das ações ou quotas emitidas, quanto (ii) entre o valor de mercado dos imóveis e o valor de mercado das ações ou quotas com eles integralizadas.
Claro, assim, que a controvérsia decorre de um elemento alheio à tributação municipal. Os municípios se utilizam de um benefício concedido pela União e pretendem dele extrair alguma vantagem, sem que nada em sua esfera jurídica tenha sido afetado. De fato, se a integralização ocorresse pelo valor de mercado, tudo o que se teria seria a incidência imediata do imposto de renda sobre o ganho de capital, sem o nascimento de qualquer dever de ITBI. Por que razão a integralização por um valor menor (e contra cotas ou ações com um valor de face também menor) deveria atrair a incidência do imposto municipal? Em suma, a transferência dos imóveis e a emissão das cotas ou ações se fazem pelo valor histórico unicamente por economia de imposto de renda, com pleno conhecimento e mesmo sob o estímulo da União. Não há perda de ITBI que justifique uma reação dos Fiscos municipais, mas sim o oportunismo de se apropriar de incentivo outorgado por um terceiro (a União) a outro (o contribuinte).
Embora em outro contexto, a tributação por um ente político de benefício fiscal concedido por outro já foi analisada pelo STJ. No EREsp. 1.517.492/PR (1ª Seção, Relatora para o acórdão ministra Regina Helena Costa, DJe 01.02.2018), em que afastou a incidência de IRPJ e CSLL sobre créditos presumidos de ICMS (subvenções para investimento), a Corte deixou claro que a pretensão fiscal ali analisada equivaleria à “possibilidade de a União retirar, por via oblíqua, o incentivo fiscal que o Estado-membro, no exercício de sua competência tributária, outorgou”, aniquilando “instrumento legítimo de política fiscal para materialização da autonomia consagrada no modelo federativo”. Segue a ementa assinalando que “a tributação pela União de valores correspondentes a incentivo fiscal estimula competição indireta com o Estado-membro, em desapreço à cooperação e à igualdade, pedras de toque da Federação”.
Ora, se a União não pode passar por cima de lei estadual para tributar benefício concedido por Estado-membro, por que motivo poderia o município apequenar imunidade constitucional para tributar isenção — na verdade, um simples diferimento, pois o ganho de capital será tributado na futura alienação das cotas ou ações integralizadas com imóveis — outorgada por lei federal?
Em conclusão, o recente acórdão do STF parece-nos, com o máximo respeito, merecedor de críticas, mas nem de longe referenda a exigência de ITBI sobre a diferença entre o preço de mercado (ou o valor cadastral) do imóvel e o seu custo histórico, quando este último tenha sido adotado pelo contribuinte para integralizar cotas ou ações de igual valor de face.
1 “Art. 36. Ressalvado o disposto no artigo seguinte, o imposto não incide sobre a transmissão dos bens ou direitos referidos no artigo anterior:
I – quando efetuada para sua incorporação ao patrimônio de pessoa jurídica em pagamento de capital nela subscrito;
II – quando decorrente da incorporação ou da fusão de uma pessoa jurídica por outra ou com outra.
(…)
Art. 37. O disposto no artigo anterior não se aplica quando a pessoa jurídica adquirente tenha como atividade preponderante a venda ou locação de propriedade imobiliária ou a cessão de direitos relativos à sua aquisição. (…)”